Sem-forma
(1) uma casa não é uma casa não é uma casa
A vocação primária da casa como espaço habitacional particular nunca negou a presença da arte, pelo contrário: ao menos no recorte ocidental (evidentemente restrito e limitado), formas de decoração e colecionismo, de domesticação da arte, já eram vistas desde a antiguidade. Contudo, sua ampla inserção nos contextos privados (entre aristocracias e, mais tarde, burguesias) se deu de maneira mais marcante depois do século XVIII, seguida por uma modernidade que ensejou um colecionismo ávido e um pouco mais abrangente, alimentando também a emergência das galerias comerciais. Em paralelo e ao mesmo tempo, surgiram os espaços públicos exclusivamente dedicados à arte – museus e instituições –, absolutamente distintos das residências, dos salões acadêmicos em palácios, e das igrejas com seus afrescos e retábulos.
Hoje, contudo, a casa transformada em espaço expositivo não coincide com nenhuma das esferas onde, até pouco tempo atrás, estávamos acostumados a fruir da arte. A diferença entre um museu ou galeria ou casa decorada ou de colecionador e uma casa-exposição reside no deslocamento do uso do espaço. Ela não é um cubo branco; seus elementos arquitetônicos interferem na contemplação e sua escala desafia as proporções da produção contemporânea; sua dimensão privada é tensionada pela visitação pública ao ser despovoada de moradores e ocupada apenas por visitantes passageiros. Esse desvio de função, por outro lado, suscita um campo fértil para discutir e investigar outros caminhos de apresentação, leitura e, por que não, consumo da arte. Nesse contexto, trançam-se inseparavelmente os campos da arquitetura, do design e das artes visuais: velhos vizinhos que aqui buscam conviver de outros modos.
É, então, nessa espécie de de cubo-não-branco, que acontece a mostra “Qualquer forma é outra forma”. Este é o segundo projeto organizado pela Simões de Assis que reflete sobre tal entrecruzamento, combinando peças de mobiliário e produções visuais emolduradas pela arquitetura, fora dos tradicionais âmbitos expositivos. Em 2023, a galeria ocupou por mais de três meses a Casa Gerassi, último projeto residencial de Paulo Mendes da Rocha no Brasil, apresentando um diálogo póstumo entre Ione Saldanha e Etel Adnan que também foi acompanhado de mobiliário de design autoral. Nesta segunda iniciativa, o local escolhido não poderia ser mais acertado: a casa modernista projetada no final da década de 1930 por Victor Brecheret, um dos escultores mais proeminentes da geração moderna do país. Idealizada como moradia e ateliê, ela foi posteriormente reformada por Rino Levi e, hoje, serve de plataforma para o Apartamento 61, galeria dedicada ao design vintage e contemporâneo que organiza essa exposição junto à Simões de Assis. Encontramos aqui a epítome da confluência-confusão entre arte, arquitetura e design, colocando a casa em diálogo com 23 artistas brasileiros e com nomes fundamentais da arquitetura e do mobiliário moderno, como Lina Bo Bardi, Joaquim Tenreiro, Sergio Rodrigues, Jorge Zalszupin, Celina Zilberberg, Aurelio Martinez Flores, Lucio Costa, Giancarlo Palanti e Janete Costa; e do design contemporâneo, com Maximiliano Crovato, Luiz Solano, Paola Muller e Estúdio Rain.
(2) forma reforma disforma transforma conforma informa forma
Em algum momento da história, decidiram separar a geometria da natureza, desassociando-a da organicidade das coisas. Na matemática, a geometria desenha formas e calcula tamanhos por meio de fórmulas deduzidas há milênios (por Euclides e Pitágoras e tantos outros depois deles). Mas é preciso lembrar que mesmo essas deduções racionais resultaram de observações do mundo natural, levando à identificação de padrões e proporções que integram o tecido da existência desde sempre – são uma espécie de resumo prático, sintético, diante da infinita imensidão do mundo perceptível. Com esse movimento, a geometria – a medida da terra –, passou cada vez mais a confundir-se com racionalidade ou com cartesianismo, como se apenas formas regulares, artificiais ou ortogonais pudessem encaixar nesse campo. Hoje, é mais provável que o termo evoque retas, ângulos e volumes simétricos, exatidão e até rigidez, ao invés de curvas ou gestos sinuosos; cálculos e teoremas e não o contorno das montanhas ou das pedras. Acontece que essa separação não só marcou o campo da ciência, mas também o da arte. Passamos a opor, por exemplo, geometria e expressionismo (dentro de outras oposições como abstração e figuração), e até mesmo a criar classificações secundárias como abstração formal e informal, misturando também outros conceitos.
Inclusive, vale uma digressão sobre o estranhamento de classificar algo como “abstração geométrica”, uma vez que poderíamos considerar o abstrato como aquilo que não podemos nomear, e quadrados, triângulos, círculos etc. são figuras, representações, têm designação precisa. Mas, independentemente destas tensões classificatórias, o abstrato é mais do que apenas aquilo que é geométrico, e geometria não é apenas aquilo que podemos ligar à matemática – ainda que a todo instante esses termos sejam confundidos, até usados como sinônimos. E o fato é que tanto geometria como abstração acabaram provando-se categorias estéticas estanques e rígidas, insuficientes para conter a complexidade do pensamento artístico contemporâneo. Dentro das imprecisões ao redor destes e outros termos, revela-se um campo fértil para artistas que desejam investigar o que há no entre, nas lacunas e sobreposições, nas ambiguidades e rivalidades, desafiando oposições. Nesta exposição reunimos trabalhos que contornam, expandem ou superam algumas destas desgastadas “polarizações”: aqui é possível dizer-se abstrato e figurativo, geométrico e livre ou gestual, tudo ao mesmo tempo. Afinal, no campo da arte, duas premissas opostas podem coexistir em harmonia, dois vetores contrários não precisam se anular mutuamente.
Em conjunto, esses trabalhos não aderem plenamente às linhas construtivas, concretas ou neoconcretas da história da arte brasileira, nem se filiam integralmente às correntes do expressionismo abstrato, do minimalismo ou da land art estadunidense. Eles partem de desafios a esses movimentos-padrões, discutindo e articulando também outros binômios associados a essas equações históricas: imagem-linguagem, forma-função, natural-artificial, figurativo-literal, simbólico-abstrato, material-conceitual, físico-metafísico...
De um lado, temos artistas que buscam a organização do pensamento em forma concreta, a espacialização das ideias. São obras cujas linhas retas abrigam a ilusões de ótica ou evocações orgânicas, como no caso de Alexandre Canônico e Mano Penalva; ou cujas linhas sinuosas desenham formas inomináveis, como na pintura de Mari Ra. De outro, trabalhos cujos objetos constitutivos perdem seu sentido original no processo de apropriação em favor de configurações inéditas, formulações inusitadas, como no caso dos carretéis da escultura “Sem título” de Claudio Cretti; da garrafa e do pêndulo que formam “Ikebana”, de Alexandre da Cunha; e da marreta sobre a delicada sopeira em “Sem título”, de Nino Cais. Já “Torso”, de Marcelo Pacheco, e “Construtivismo rural”, de Nelson Leirner, chamam atenção pelo jogo de linguagem entre título e imagem. O humor presente nestes trabalhos emerge em outras peças, como na série “Ping Poema” de Lenora de Barros. Enquanto isso, alguns artistas empregam a semântica e figuras e estruturas de linguagem para tensionar o campo visual, jogando com a palavra como signo e símbolo, como Niobe Xandó com sua escrita-desenho, Marilá Dardot e seu letreiro evocativo de emoções e sensações, ou mesmo as marcas e garatujas que lembram desenhos rupestres no vaso de Jacque Faus. Há também obras de inclinação mais subjetiva, como no monocromo de João Trevisan ou na escultura de Mestre Didi.
Também temos artistas que examinam as relações entre natureza e artificialidade, materialidade e cor, presentes em formalizações não-figurativas, como nos totens de Ione Saldanha, no relevo de Anderson Borba, nas “Minas de cor” de Amelia Toledo e nas formas-flores de Suanê. Esses trabalhos reverberam a organicidade dos materiais naturais, como o bambu, a pedra e a madeira, ao mesmo tempo que também contam com a geometria em suas composições. Há peças que lançam mão de materiais industriais e industrializados como elementos constitutivos e construtivos, valendo-se de um vocabulário visual mais concreto, como no caso da escultura prismática de Emanoel Araújo, no relevo de Ana Hortides e nos relevos de concreto de Rodrigo Sassi. Por fim, há trabalhos de natureza mais ambígua, residindo no hiato entre representação e não-representação, como as paisagens-abstrações de Marepe e Daniel Acosta, que subvertem a função dos materiais e seus sentidos – no caso o papel e a fórmica.
Os artistas aqui reunidos articulam singularmente matéria concreta e poética, formulando diferentes sistemas de construção e expressão que se valem das múltiplas facetas da geometria: ora mais racionais, ora mais intuitivas, ora mais orgânicas, ora mais filosóficas. Seus trabalhos não se prendem a classificações e sentidos pré-definidos; é no confronto com a história da arte e no embate com o público, no ato de leitura das obras, que eles revelam como funcionam no mundo, os efeitos que causam, informando (sempre de maneira inédita) os espaços que ocupam ou podem ocupar dentro da sintaxe coletiva da exposição e de suas produções individuais. Enquanto cientistas (e linguistas, matemáticos, filósofos e, porque não, curadores) tentam encaixar o que existe no mundo em caixas específicas, são os artistas aqueles que podem (e conseguem) inventar e dar formas outras ao universo e a tudo que ele contém.
Julia Lima
¹ Inspirada no poema “Sacred Emily”, de Gertrude Stein.
² Poema de José Lino Grünewald, sem título, 1959