É na memória do instante que o tempo se suspende, no contorno gestual experienciamos narrativas ancestrais e aprendizados que perpassam as camadas e texturas do californiano Dashiell Manley e do venezuelano Samuel Sarmiento. A mostra “Instante-memória” consolida o atravessamento poético entre as práticas que projetam no espaço um diálogo rítmico em tons lilases que se mesclam, amalgamando técnicas e processos matéricos diversos. Flui certa sinestesia, pela construção imagética somos provocados em outros sentidos, capturando o som das cores e a sensibilidade das texturas, o pigmento esmaltado se entrelaça ao aspecto moldável da pasta de tinta na tela.
O gesto escultórico é formativo nos dois artistas. Sarmiento nos reconta narrativas em pinturas sobre o suporte cerâmico. Manley modela a luz esculpindo com tinta a óleo em pinturas espessas e tridimensionais, projeta refrações em várias cores e ângulos sutilmente diversos, para finalmente refletirem em quem as contempla. Suas formações beiram o abstrato, mas assomam outras possíveis formas, como atmosferas distantes a serem descobertas, o farfalhar de folhagens em uma paisagem outonal ou mesmo frames do vento que desenha sobre a água salina. Essas percepções elevam-se da modelagem pictórica de Manley, um relevo que se forma e multiplica a partir da condensação da densa tinta. Partindo do branco, projeta topografias em cadências tonais, delineando uma coreografia cromática.
O gestual em Manley é caracterizado por técnicas e processos profundamente focados e repetitivos, empregando gestos incessantes ao depositar a tinta - as velaturas de cor sobrepõem vestígios silenciosos do gesto e de matéria em uma reflexão visual aproximada dos ikebanas, que irrompem formações florais, galhos e folhas. Suas técnicas entrelaçam as tradições de atenção plena do leste asiático a respostas emocionais a eventos e questões sociopolíticas. Composições meticulosas vinculam o processo meditativo do artista e dos observadores, que se inebriam da energia que emana da pintura.
A investigação histórica é uma maneira de reinterpretar reveses inerentes à sobrevivência humana, bem como identificar as trocas e conexões transatlânticas que ligaram a humanidade em diferentes níveis. Sarmiento, a partir do desenho, recupera narrativas que abarcam os saberes fundadores caribenhos e os mecanismos de aprendizagem baseados na oralidade. Cada objeto é alegórico, se relaciona a processos históricos como extrativismo, construção identidade e migração. A cerâmica une a expressão e a narrativa, uma manutenção de um patrimônio resoluto a partir de um vislumbre contemporâneo, transloca a operação pictórica da pintura para o objeto escultórico.
Mitos e lendas ancestrais perpassaram centenas de milhares de anos para oferecer um vislumbre da origem do universo, da terra e da humanidade. Sarmiento traduz a oralidade em figuração, alicerça o conhecimento ancestral em arte e enuncia a cosmogonia caribenha em todas suas nuances, as violências, sutilezas, encantamento e repertório ancestral. Retoma um desses contos, em que os homens viviam em uma dança perpétua com a sede. A água, elixir fundamental e sagrado, era impossível de ser aprisionada. Os anciãos com olhos de sabedoria das estrelas, invocaram a deusa da selva, que lhes revelou o segredo das entranhas do rio e, ao mergulharem nas profundezas, encontraram pedras e a argila, dotada de magia, pois, quando tocada pelo fogo se transformava em resistência, capaz de conter água e alimentos - nasceu a cerâmica, permitindo aos homens dominar a sede e a fome. Nesse entremeio, o rio, bastante ciumento de seus segredos, também ocasionou o despertar da ganância e ambição humana. Antes era fonte de vida, tornou-se campo de batalha. O destino da humanidade ressoa nos ecos dos rios, nas cicatrizes da terra.
Cada cerâmica retoma esses universos narrativos, cristalizam a oralidade em contemporaneidade. As esculturas contam novamente a história dos conquistados, ao questionar o extrativismo estético e adicionar camadas simbólicas, reavivando e ressignificando o que foi propositalmente soterrado.
Apesar de trajetórias e fortunas referenciais diversas, ambos artistas criam um profundo diálogo conceitual e formal. A fatura matérica é componente catalisador da produção poética do duo, que manipula a matéria e cada traço de pigmento se torna parte do discurso visual. As pontas que emolduram as cerâmicas se contaminam e complementam nas espatuladas camadas de tinta a óleo crepusculares. O cerúleo se combina com os dourados, os lilases etéreos emergem dos amarelos ambarinos, uma oscilação entre figuração e abstração.
Manley e Sarmiento apropriam-se da matéria e da expansão do suporte, cada qual à sua maneira, sendo síncrona a fragilidade e força da ação do gesto, o tecer entre as texturas do óleo e do glaceado cerâmico. Espreitamos nos rostos áureos de Sarmiento a lembrança de quando a vida dominada pela penumbra foi rompida com a ação da deusa do mar que arremessou rochas e corais em direção ao céu. Surgiram aberturas brilhantes, foram reveladas as estrelas. Esse esplendor deixou marcas nos olhos dos humanos, as pupilas, essas que nos permitem contemplar corpos celestes e planetas, e apreciar a luminosidade intensa que emana das formações pictóricas de Manley.
A captura do instante é sempre paradoxal, é presença e ausência, algo pouco concreto, embora absolutamente tangível, e sua contundência se prolonga no encontro com suas poéticas. É na textura do brilho vítreo que a cerâmica guarda informações para futuras gerações, assim como é o conhecimento que está em cada uma das imbricadas cavidades da tinta óleo. Ao nos depararmos com os trabalhos, contemplamos o tempo, por vezes fugidio ou demorado, a sinestesia envolvente como no segundo da condensação do orvalho, caminhamos por suas nuances. São nas marcas repetidas da história que emerge o processo meditativo no instante-memória, do alongamento do tempo e de suas fissuras, aliviando o peso da memória pela elevação da forma.
Mariane Beline