Cenas Elétricas
Em meados dos anos 1910, a artista Sonia Delaunay já havia realizado um amplo conjunto de suas composições abstratas, constituindo as bases para o que o nomeava como “pintura simultânea” — campos ópticos dinamizados pelo contraste entre as cores, projetando formas, movimentos e ritmos. Vários desenhos e pinturas dessa fase foram intitulados como “Prismes électriques”, aparece como metáfora visual para o efeito que ela buscava: decompor e reconfigurar a luz e o espaço pictórico por meio da cor. A inspiração principal, segundo a própria Delaunay, era a experiência urbana e o novo ritmo noturno da cidade que passava a ser iluminada e movida por eletricidade. “A luz elétrica transforma a cidade em um caleidoscópio em movimento” (Sonia Delaunay, caderno de esboços, 1913-14).
Cem anos depois, as lições de cor-composição de Delaunay reverberam nos desenhos da artista Márcia de Moraes, em que a fragmentação da forma pela cor também é a chave para a construção visual rítmica. Os trabalhos de Márcia são totalmente criados a lápis sobre papel, dos contornos de grafite que estruturam sutilmente a imagem, aos preenchimentos coloridos que vibram e fluem sobre o plano. Por outro lado, a tensão moderna entre figuração e abstração já dispersa desde a década de 1970, abre margens para o repertório poético das linguagens contemporâneas, mesmo quando se trata de meios tão conhecidos como o desenho. É nesse ponto que entendo outro diálogo entre Sonia e Márcia, a presença de um prisma, uma espécie de lente difratora, criando um sentido de espacialidade interna em cada obra, nos fazendo ver de dentro para fora e vice-versa, simultaneamente.
Os desenhos prismáticos de Márcia de Moraes parecem filtrar, distorcer e refratar nossa percepção. Nos desafiam a reconstruir corpos e espaços, formas já muito rotinizadas em nosso imaginário — das plantas, paisagens, insetos, lagos e corais. Ao mesmo tempo, parecem nos guiar por um universo microscópico que lembra organismos desconhecidos, complexos celulares a serem descobertos ou arquiteturas neurais. São tantas imagens cabendo em detalhes e na totalidade que ativam o olhar para ver através e em meio à multiplicidade constituída nos encontros dos traços a grafite e lápis de cor que dialogam com o vazio do papel.
O convite é para uma observação prolongada, alternando distâncias e se desapegando da necessidade de decifração.
Tálisson Melo