Um celeiro em chamas. Um sonho-memória. Uma atmosfera enevoada. O silêncio e o tempo suspensos. A cena é captada em um plano lento e alongado em que a câmera vai se aproximando. Um plano sequência da personagem que atravessa silenciosamente o campo e se depara com o celeiro completamente tomado por labaredas, sendo consumido pelo fogo. O som das fissuras da madeira se dissolvendo em chamas e a fumaça cinzenta envolvendo o local e ela, esperando, imóvel diante do colapso inevitável, reverenciando o que é maior que sua pequeneza. A cena, retirada de “O Espelho” de Andrei Tarkovsky, reflete sua trajetória fílmica da meditação visual. Diante do tempo, da transformação e da fragilidade da vida, as chamas se condensam e o que permanece é a percepção da contemplação, do abalroamento da dimensão interna mental com o externo. Turvo Reflexo é o entre, que oscila entre o visível e o oculto, em camadas translúcidas que se completam a cada olhar atento, a relação reflexiva sobre a velatura e a capacidade turva. Diante do conjunto matérico de João Trevisan somos convocados a esperar o esticamento do tempo, bem como a personagem não corremos para apagar o fogo, sentimos uma calma irrompente que evoca uma presença contemplativa, do corpo diante da matéria, Trevisan esculpe o tempo e hipnotiza como Tarkovsky.
Trevisan opera no alongamento da percepção, agindo em parceria com a matéria, forja e embosca sua técnica e azeita a própria linguagem. Há uma reflexão compositiva de seu trabalho, a imagem que se dissipa e envolve o olhar, que percorre a claridade, a luz se apresenta como uma partitura, em que cada pintura emite uma vibração. A exposição nos permite acessar cinco séries de sua produção, algumas ainda inéditas - Concomitante, Paisagens, Unidade luminosa, Monocromo e Intervalos. São atos compositivos de um grande motivo, como em uma ópera, ao se referirem ao mesmo universo, em diálogo dos pares e coesos com a peça completa. As séries são interligadas intimamente, em 2018 pintou o primeiro Monocromo, mesmo ano que pintou o primeiro Intervalo, isso demonstra o desdobramento de seu processo. Deriva de um modo não linear e ramificado, em que não há centro e hierarquia, mas que paradoxalmente, tudo é central, os blocos densos de cor são unidos pela fatura, se prolongando uns dos outros.
Diante de uma contemporaneidade em que tudo é descartável, instantâneo e comprimido, o tempo se torna alongado e embarcar na luminosidade da pintura é ampliar o sensível. João Trevisan nos convida a habitar o espaço do silêncio e da contemplação ao consolidar a pintura no tempo dilatado.
Os títulos nos trazem informações óbvias com toques curiosos, ora mais diretos, ora mais lúdicos. Nos versos das obras há algumas deliciosas surpresas, rastros deixados pelo artista, que nos aproximam de sua presença, como em Intervalos, nas manhãs, eu sinto falta de você.
As gradações de cor variam na espessura, demonstrando maior ou menor opacidade, em que camadas mais profundas transparecem e se interferem. Notamos a destreza técnica do artista, em que as cores, mesmo quando empregadas sempre da mesma maneira, são sempre diferentes, se os pretos irão se complementar ou interferir nas cores de cobertura, se aparecem ou se dissolvem, e indicam uma coparticipação entre a tinta a óleo e o veludo criado pela encáustica.
Insere de modo singular pequenos desafios ao olhar, certas irregulares propositais, como em Concomitantes. Deslocamentos sutis, como uma pequena margem no início de um parágrafo, demonstram uma racionalidade em pensar o trabalho de maneira calculada, mas não apenas, há algo de intuitivo na relação das cores, o processo de feitura é metódico, desde a profundidade do chassi até a finalização. Esse jogo da percepção só é criado no contato com o presenciador, que ao botar reparo em deslizes das formas, evidencia a força propositiva do artista em suas ondas cromáticas ritmadas.
A tela é encorpada, inicia com camadas de gesso cruzadas, diluídas até o ponto de engrossarem, adicionando corpo ao processo, para então seguir com a adição de dez a doze camadas de preto. Transborda a fatura e articula o corpo da pintura a partir do hábito da repetição. Quando secas, realiza a velatura da superfície, uma cobertura diáfana com o preto, em que as cores sutilmente se invisibilizam, e com a limpeza posterior, o corpo pictórico se eleva ao equilíbrio. Retira o excesso, deposita luz, deposita pigmento, esculpe o corpo da pintura ao modelar sua relação com a luz. Elabora um processo de enceramento da pintura, em que as ranhuras vão sendo preenchidas pelos pretos, sendo possível a percepção da luminosidade residual proveniente da base branca, revelando o processo de retração do pigmento com a secagem, quando suas partículas se adensam e se aproximam, revelando parcialmente o fundo.
Há uma vontade derivada da escultura, de um ciclo poético que surge do papel, retorna para as esculturas e eclodem nas pinturas. As linhas se manejam no tridimensional como no bidimensional, sua fatura pictórica ergue-se como forma no campo escultórico. Modela fibras de tinta, ocasionando uma ilusão luminosa pelo volume, há um certo aspecto enigmático de tentar decifrar de onde vem a cor e para onde vai a centelha cromática. Engendra um método repetitivo que beira a meditação budista, repete o processo, repete a forma, repete o preparo e as camadas. A relação com a pintura é corpórea, na qual o gesto do artista se prolonga e o que vemos é o turvo reflexo do derramamento de Trevisan.
O artista é atravessado pela vida fora do ateliê, conduz sua feitura por contaminações urbanas, a capital do país, Brasília, não é apenas sua morada, mas é igualmente o habitar da pintura. Quando seca, a paisagem da cidade revela um vermelho terroso, o cerrado em sua constituição genuína, berço do Pequi e do Baru. Por vezes visualiza um ar menos árido, um momento mais orgânico e nutritivo - Trevisan é permeado por essas manifestações, se deixa ser infiltrado.
A percepção está no campo sensorial, sua prática se completa na ativação do olhar do observador, que deixa de ser externo e se torna parte constituinte da projeção das cores, o encontro quintessencial entre o corpo matérico e o corpo sensível. Somos convocados a nos aproximar e afastar dos trabalhos, de modo que Trevisan propicia uma experiência visual da imersão em seu universo, uma forma emocional de estar diante do seu contorno. A feitura pictórica é uma conversa atenta entre a matéria e o fazer poético, a aplicação da cor é tão relevante quanto a escolha desta. A coincidência da opacidade com o brilho e o encontro da encáustica com o volume do óleo, revelam como a pintura conserva vestígios do instrumento e da performance gestual com o material, o artista indubitavelmente está ligado às veleidades e aspirações da matéria.
Um pulso rítmico nas formas que se repetem na construção matérica, nos deslocamentos e nos espaços, na potência da presença das cores sobre as outras. A poética de Trevisan é uma chama que se espalha pelo celeiro, não como destruição mas como um processo de disseminação. Se torna carvão, fuligem e a fumaça que alastra o ambiente, se dissipa em neblina de maneira sutil. O rastro nevoeiro é uma potência, o que se vê e sente vai gradualmente sendo velado e se transmuta, recobre a paisagem, interrompe a percepção e convoca a pausa. A rendição do tempo e a espera do revelar o que é fugidio ao olhar é como experienciamos Turvo reflexo.
A veladura na trama da superfície é a névoa ramificada pelo espaço expositivo, uma vinculação rítmica que emana de todos os trabalhos, o locus da pintura é sempre revisitado, se articula em outras tantas possibilidades, que ciclicamente retornam e se complementam. Ao embarcar em sua prática poética, notamos nuances, sutilezas da fatura da pintura que vão se consolidando no olhar de quem se depara com suas paisagens geometrizantes e, em Turvo Reflexo, nos absorvemos em uma ocupação luminosa e contemplativa de João Trevisan.
Mariane Beline