A Modernidade de Niobe Xandó

Não é por acaso que Niobe Xandó se interessou pelo contexto das pesquisas artísticas da Bahia no final dos anos 50, onde abriu uma mostra individual na Galeria Belvedere da Sé. A cidade era, nessa época, um importante centro de reinvenção da africanidade no Brasil, atraindo a atenção de muitos artistas e intelectuais. Esse processo de “nordestinização do modernismo”, que durou várias décadas, colocou em tensão três linhas de força: as oficiais durante a ditadura, que queriam criar imagens da afrobrasilidade para atrair o turismo; as forças da militância dos movimentos negros, que contestaram essa folclorização décadas depois; e, também, nas margens desses dois discursos, havia uma arena de artes experimentais que operava como um tecido de redes e colaborações entre intelectuais e artistas repensando essa africanização da pobreza nordestina a partir de um lugar crítico. É nesse contexto de trabalho coletivo e afetivo que Rubem Valentim descobriu o trabalho de Xandó. Fascinado pela sua lucidez, considerou-a “a primeira artista brasileira da textura", pelo tratamento da pintura matérica que remetia aos gestos do fazer popular, no qual a mão da artista e os materiais estavam muito presentes na superfície da pintura. Autoras como Catrin Seefranz argumentam que a arte manteve uma relação complexa com esse processo de africanização, já que produção artística resistia a ser instrumentalizada pelos discursos oficiais de turistificação complacente. Talvez seja por isso que, aprisionados por essa demanda folclorista, muitos artistas tiveram um reconhecimento tardio, já que, nas palavras de Seefraz, “as prioridades não eram a arte”[1] nessa estratégia de reinvenção.

Mas a estadia de Xandó na Bahia não foi muito prolongada, se alguma coisa caracterizou seu trabalho, foi o receio de se inscrever em movimentos fechados, rejeitando etiquetas que determinassem seu trabalho para sempre. A artista preferiu dialogar, dançar, flertar, com esses movimentos ou até mesmo friccioná-los quando necessário. Possivelmente essa foi umas das razões da sua breve passagem pela Bahia, como também foram breves suas relações com movimentos como o dadaísmo, o letrismo em Paris, ou o surrealismo.[2] Algo interessante é que todos esses movimentos mantiveram um intenso diálogo colonial com o primitivismo das vanguardas. Os surrealistas, por exemplo, a partir da psicanálise, situaram o primitivo em um lugar no inconsciente do indivíduo a ser resgatado, primário, anterior à racionalidade. Outros, como o cubismo, geraram fortes alianças com a antropologia, considerando o primitivo um lugar do passado histórico do indivíduo, um estado anterior e mais puro ao desenvolvimento.[3] Nada disso é estranho ao abstracionismo de Xandó.

De fato, a abstração nas vanguardas é uma mediação entre partes, como já intuía Xandó quando escreveu: “Talvez a minha obra seja o resultado de um choque do homem primitivo com o homem atual.”[4]  É o que ela chamou de mecanicismo, em um encontro crítico entre o progresso e a ciência com a espiritualidade. Antonio Carlos Abdalla indicou que os mecanicistas enalteciam as tecnologias, mas ao mesmo tempo eram muito críticos com as suas consequências de desumanização.[5] A espiritualidade de Xandó tem um potencial desestabilizador das narrativas oficiais do abstracionismo brasileiro, baseado na técnica, na ciência e na fé cega no progresso do Concretismo canônico. Por isso, trata-se de um abstracionismo excêntrico, como denominado por Cecilia Fajardo-Hill.[6]

Mas enquanto o primitivismo das vanguardas europeias situavam uma alteridade não ocidental, distante no tempo e no espaço, a vanguarda brasileira o situava no presente e na cercania, reconhecia-se com ela uma questão de identidade nacional e de brasilidade. [7] Obras de Xandó como Máscaras VII (1975) ou Sem título (c. 1970), portam o verde-amarelo como uma escrita codificada nacional e identitária.[8]  É por isso que Fajardo-Hill achou no trabalho de Xandó mais uma referencia à cultura popular que ao primitivismo. De fato, o interesse pelo popular foi uma das grandes constantes naquelas décadas para a maioria dos artistas. Nesse contexto, a procura de uma espiritualidade própria baseada na cultura popular brasileira, tinha uma função quase sanadora das falências da sua razão, quebrando a distância que ela impõe.[9]

Mas tanto o abstracionismo em geral, como a própria cultura popular presentes na obra de Xandó tem uma relação muito importante com a a-historicidade, um dos conceitos chave do teórico Vilém Flusser, com quem manteve uma forte amizade ao longo de sua vida. As máscaras das suas pinturas se sucedem sem prescindir das estruturas, uma sorte de tecnologia de reprodução, ou inclusive se confundindo com as próprias máscaras em obras como Máscaras XXXII / O jogo III (1986) ou As seis máscaras (1972) ou O desfile II (1975). Nessas pinturas as representações das máscaras africanas se sucedem de um jeito mecânico, na sua repetição serial, que pintava de uma forma quase automática como a própria autora tem declarado, mas ao mesmo tempo manual. A representação de Xandó interrompe a narrativa linear historicista se aproximando da temporalidade própria da cultura popular, da a-temporalidade nessa reprodução cíclica, circular. Para Vilém Flusser, é justamente com essa contribuição a-histórica que Xandó cria um espaço de liberdade existencial, e o mundo a-histórico continua a manter contato com a realidade longe da alienação dos discursos.[10] Quando a realidade histórica está esgotada, para Flusser, é no jogo e na sua ruptura com o tempo linear, que se pode achar a des-alienação. Os gestos de Xandó estão muito perto desse homo ludens que Vilém Flusser propunha, um homem a-histórico, que não procura o progresso, mas a felicidade, sem renunciar à tecnologia. “Jogar, não significa mais apenas atividade preparatória para o trabalho, ou atividade restauradora de forças depois do trabalho, mas pelo contrário: ciência, economia, técnica e guerra não passam agora de variantes de jogos”.[11] Os retratos mecanicistas de Xandó de subjetividades tecnológicas e arcaicas em desintegração, como em As seis máscaras (1972), Máscaras LXII/ O diálogo (1968) ou Máscaras XXV/ O jogo I (1968), são também futurismos interrompidas pela atemporalidade do jogo, da cor, das repetições seriais imperfeitas, das tecnologias defeituosas e dos gestos. Flusser também escreveu sobre uma nova língua brasileira pela qual Xandó se interessou em seus grafismos, que representou uma revolução linguística crucial para o filósofo na forma de pensar desse homo ludens. Nas obras de Xandó como Máscaras XIII (1980), O Enigma da Nova Escrita I (1966), ou Máscaras (1967), os grafismos podem acompanhar as máscaras, ou inclusive fazer parte delas, mas também, e sobretudo, podem virar as próprias máscaras, tornando-as então, pura linguagem. Esse pode ser um dos encontros secretos entre o contemporâneo e o arcaico que indicava Giorgio Agamben.[12]

 

María Iñigo Clavo

 


[1] SEEFRANZ, Catrin. Modernismo Pobre, Poor Modernism. The Emancipatory Practices of the Brazilian Avant-Garde na Bahia in the 1960s. Em BARREIRO, Paula y MARTÍNEZ, Fabiola. Modernidad y vanguardia: rutas de intercambio entre España y Latinoamérica (1920-1970). Madrid: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, 2012.

[2] Jose Carlos Adballa explica de forma detalhada os diversos encontros com esses movimentos e a progressiva recusa da artista de se enquadrar nos movimentos.  ABDALLA, Antonio Carlos. A obra surpreendente de uma artista única e múltipla. (texto inédito)

[3] Ver FOSTER, Hall. “The Artist as Ethnographer”. Em: The Return of the Real, Cambridge: The MIT Press. 1996. Para esse texto usaremos o conceito de primitivismo descrito por Foster nesse texto em relação colonial às vanguardas.

[4] “Niobe Xandó para Maria Ignez Corrêa da Costa”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro/RJ, 06/08/1969.

[5]  ABDALLA, Antonio Carlos. A obra surpreendente de uma artista única e múltipla. (texto inédito)

[6] HILL-FAJARDO, Cecilia. “Las ‘otras’ modernidades”. Em: Barreiro, Paula y Martínez, Fabiola. Modernidad y vanguardia: rutas de intercambio entre España y Latinoamérica (1920-1970). Madrid: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, 2012.

[7] Como sabemos, a apropriação cultural tanto da arte no ocidente quanto da cultura popular foi uma constante desde as vanguardas internacionais, como o Cubismo de Picasso, por exemplo, até a arte brasileira desde princípios do século XX. Se o nacional e o colonial são intercambiáveis (o segundo é uma continuação do primeiro), pensar a partir de identidades nacionais tem o mesmo efeito que pensar a própria antropofagia de Oswald de Andrade. A pesquisa de Niobe faz parte dessa genealogia da história intelectual do país.

[8] Como explicava Laymert García dos Santos “inventado um código,  um gênero de ideograma pós-alfabético capaz de articular uma mensagem que contava do Brasil atual com tanta força como o fizeram a Bossa Nova ou o Cinema Novo”. GARCÍA DOS SANTOS, Laymert. “Niobe Xandó e a passagem da imagem”. Em: Niobe Xandó: A Arte de subverter a ordem das coisas. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 5 maio-24 junho 2007.

[9]  Ver FOSTER, Hal. The "Primitive" Unconscious of Modern Art. October, Vol. 34 (Autumn, 1985), pp. 45-70

[10] Outra autora que tem uma visão muito similar a esse entendimento do popular é Marta Traba, que o considerava lugar privilegiado fora da lógica moderna. ver. TRABA, Marta. La rebelión de los santos, Ediciones Puerto, San Juan de Puerto Rico, 1972.

[11] FLUSSER, Vilém. Fenomenologia do brasileiro: em busca de um novo homem, Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 1998.p. 169.

[12] AGAMBEN, Giorgio. Che cos’è il contemporaneo?, Roma: Nottetempo, 2008.

Máscaras LXII / O Diálogo, 1968

Óleo sobre tela

81 x 116 cm

Máscaras III, 1967

Óleo sobre tela

46 x 61 cm

Sem Título, 1967

Óleo sobre tela

84 x 52,5 cm

Máscaras XIII, déc. 1980

Óleo sobre tela

80 x 116 cm

Máscaras, 1967

Óleo sobre tela

71 x 90 cm

Máscaras XXXII / O Jogo III, 1986

Acrílica sobre tela

70 x 105 cm

Máscara CCXXXVI / Grande Máscara-portal,1974

Óleo sobre tela

131 x 98 cm

Sem Título, 1968/1970

Óleo sobre cartão

50 x 65 cm

Sem Título, 1970

Acrílica sobre tela

66 x 66 cm

Totem IV, 1992

Acrílica sobre madeira

51 x 10 x 10 cm

Totem I, déc. 1960

Óleo sobre madeira

16 x 14 x 6 cm

Totem II, déc. 1960

Óleo sobre madeira

19 x 8 x 8 cm

O Hippie, 1971

Acrílica sobre papel

100 x 70 cm

Black Power I, 1970

Serigrafia sobre papel

100 x 70 cm

Black Power II, 1970/1983

Serigrafia com intervenção sobre papel

100 x 70 cm

X
ID: 20
Máscaras LXII / O Diálogo, 1968
Óleo sobre tela
81 x 116 cm





X
ID: 21
Máscaras III, 1967
Óleo sobre tela
46 x 61 cm





X
ID: 22
Sem Título, 1967
Óleo sobre tela
84 x 52,5 cm





X
ID: 23
Máscaras XIII, déc. 1980
Óleo sobre tela
80 x 116 cm





X
ID: 24
Máscaras, 1967
Óleo sobre tela
71 x 90 cm





X
ID: 25
Máscaras XXXII / O Jogo III, 1986
Acrílica sobre tela
70 x 105 cm





X
ID: 26
Máscara CCXXXVI / Grande Máscara-portal,1974
Óleo sobre tela
131 x 98 cm





X
ID: 27
Sem Título, 1968/1970
Óleo sobre cartão
50 x 65 cm





X
ID: 28
Sem Título, 1970
Acrílica sobre tela
66 x 66 cm





X
ID: 29
Totem IV, 1992
Acrílica sobre madeira
51 x 10 x 10 cm





X
ID: 30
Totem I, déc. 1960
Óleo sobre madeira
16 x 14 x 6 cm





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ID: 31
Totem II, déc. 1960
Óleo sobre madeira
19 x 8 x 8 cm





X
ID: 32
O Hippie, 1971
Acrílica sobre papel
100 x 70 cm





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ID: 33
Black Power I, 1970
Serigrafia sobre papel
100 x 70 cm





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ID: 34
Black Power II, 1970/1983
Serigrafia com intervenção sobre papel
100 x 70 cm





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